Os fins de tarde de verão trazem-me sempre boas lembranças. Por isso é que o verão é a minha estação preferida. Os dias quentes, os fins de tarde que se prolongam pela noite dentro, os petiscos, as refeições fora de horas, o cheiro a dias despreocupados.
Este fim de semana voltei a participar na sardinhada de São João do bairro onde morei durante a maior parte da minha vida e onde ainda moram os meus pais. Arrisco a dizer que é, talvez, a sardinhada mais antiga da vila e que existe, pelo menos, desde que me conheço. A festa do bairro significava brincadeira até altas horas da noite.
Antes de sairmos de casa havia duas coisas importantes a fazer: o meu pai fazia uma fogueira com capelas e rosmaninho no quintal. Dizia que “era bom”, uma espécie de superstição associada à celebração do santo.
andreia gonçalves
A minha mãe arrumava a cesta de verga com pratos, copos e talheres porque ninguém desperdiçava dinheiro em artigos descartáveis que a evolução dos tempos impôs, mas que acredito que volte ao que era. Ah! E também a minha sopa porque era uma “pisca” e não comia qualquer coisa, muito menos sardinhas!
O fumo dos grelhadores acessos que começava a invadir o bairro anunciavam que a festa ia começar e era então que a vizinhança se começava a juntar. Mesa corrida na rua, luzes, bandeirolas de arraial penduradas nas tílias do jardim, a música das cassetes que saía da aparelhagem instalada na garagem mais próxima e estava tudo pronto. Dava-se, assim, início à confraternização das sardinhas, entremeada e febras em cima dos grelhadores que saiam à vez para cima da fatia de pão ou para o prato onde tinham à espera a salada de tomate. No fim, caldo verde para dar aquele aconchego ao estomago, ou como o meu pai diz “para tapar os buracos”; melão, melancia, ou outra fruta da época que alguém trazia da horta, bolo e cevada quentinha.
Era assim na minha infância e continua tudo igual. As crianças deram lugar a adultos, alguns já com as suas crianças, e os vizinhos adultos mantêm a boa disposição só que com mais rugas e um ou outro cabelo branco.
Tive a sorte de crescer num bairro onde moravam praticamente todos os meus amigos da escola. Brincar fora do recreio era diferente, mas era algo a que estávamos habituados porque aí era o nosso ponto de encontro todos os dias depois das aulas para brincar. Jogávamos à bola, às escondidas, junto ao posto de eletricidade que hoje já não existe, e andávamos de bicicleta no nosso circuito improvisado de btt construído pelos mais velhos. Não interessava se a noite estava fria como a deste sábado passado. Brincávamos até as nossas mães nos ameaçarem que se não fossemos naquele momento exato para casa íamos ter problemas.
O momento alto era saltar a fogueira, o que exigia alguma mestria. E coragem, porque não podia dar parte fraca ao pé dos meus amigos. Em fila indiana esperávamos a nossa vez. Ao mesmo tempo, íamos espreitando os saltos dos outros. Por cada salto concluído com sucesso gritávamos de alegria.
Ver saltar alguém por entre as chamas e o fumo fazia-me sentir um frio na barriga e só imaginava o que seria se alguém (ou eu) se queimasse ou caísse em cima da fogueira durante a acrobacia. Felizmente, nunca aconteceu! Só umas calças rotas, uns calções furados ou uma franja de cabelo chamuscado e um cheiro bastante perfumado entranhado na roupa, na pele e nos cabelos que acho que só saía depois de dois ou três banhos. Quando finalmente chegava a minha vez, frente a frente com o lume, a técnica incluía dar um passo a trás para tomar balanço, olhar fixamente para a chama e ir. Após o primeiro salto, a adrenalina apoderava-se de mim, esquecia o medo e voltava para o fim da fila a ansiar que chegasse novamente a minha vez.
A música ecoava em grande parte da vila e despertava a curiosidade de muitos que vinham ver o que se passava e eram sempre bem-recebidos. A festa só acabava quando o barril de cerveja estivesse vazio. Regressar ao bairro fez-me viajar no tempo. As memórias são boas e tantas que, um dia, quando tiver filhos, quero também poder construí-las com eles.
A tradição das capelas
A planta – perpétua das areias A capela A capela Colocar na cabeça para afastar as maleitas
Por cá, ainda é comum fazerem-se as coroas das “capelas” (perpétua-das-areias — helichrysum stoechas) na véspera de S. João como elemento decorativo pela sua beleza e aroma. É dos meus cheiros favoritos no início do verão. Antigamente, faziam-se estas coroas e deixam-se durante a noite de S. João no telhado para apanhar a orvalhada.
No dia seguinte eram colocadas na cabeça das crianças para que durante o ano não tivessem dores de cabeça. Havia também quem as atirasse para os telhados para se protegerem das trovoadas durante o resto do ano. Há ainda outra mezinha ligada a esta noite mágica que consistia em deixar uma garrafa de aguardente na rua que era usada durante o resto do ano para curar todo o tipo de maleitas.
(texto original publicado aqui)
No Comments